RELATORA DA ONU ARRASA O MPLA

O diagnóstico tardio da doença de Hansen (lepra) em Angola e as consequentes incapacidades físicas com que estes doentes são identificados surpreendeu a relatora especial da ONU, Alice Cruz, para a eliminação da discriminação contra as pessoas afectadas pela doença. Recorde-se que o Serviço de Combate à Lepra foi criado em 1959 e regulamentado em 1960…

Alice Cruz, que visitou Angola nas últimas duas semanas, disse à agência Lusa que já contava com um país “profundamente marcado pela desigualdade social e pela pobreza”, factores que estão associados à doença de Hansen.

“Fiquei muito surpreendida com a taxa de diagnóstico tardio. A grande maioria [dos doentes] tem diagnóstico muito tardio e com incapacidades físicas já muito desenvolvidas. Confesso que isso me surpreendeu muito”, disse, no final da visita.

Alice Cruz, portuguesa e a primeira Relatora Especial da ONU para a Eliminação da Discriminação contra as Pessoas Afectadas pela Lepra e seus Familiares, considerou que existem vários factores que contribuem para esta situação.

Por um lado, “inicialmente os sintomas da doença de Hansen são negligenciados, porque não são severos”.

A falta de autocuidado e as dificuldades que as pessoas enfrentam no acesso à saúde, principalmente os mais pobres (Angola “só” tem 20 milhões de pobres), também contribuem para este estado das coisas.

A relatora especial alertou ainda para o impacto da “perda de capacidade do sistema de saúde para diagnosticar a doença, depois de esta ser eliminada como problema de saúde pública pela OMS [Organização Mundial de Saúde], em 2005”.

“Pensa-se que a doença não existe, mas existe. É apenas uma questão percentual. A doença continua lá, mas depois desinveste-se”, afirmou.

E acrescentou: “Houve uma redução de espaço cívico em redor da doença de Hansen, levou a uma perda de recursos, perda de conhecimento da doença”.

“Quando as pessoas vão à procura de diagnóstico, muitas vezes fazem uma peregrinação nos diversos serviços de saúde até terem a sua doença diagnosticada”, referiu, acrescentando que “muitas vezes as pessoas vivem longe e têm dificuldade em ir buscar a medicação mensal”.

A relatora especial indicou ainda que identificou muitas crianças com a doença e muitas barreiras, incluindo dificuldades no real apuramento dos dados sobre a doença no país.

Antes da pandemia de Covid-19, a incidência rondava os 600 a 800 novos casos por ano.

Perante a percentagem nas crianças, “que é muito alta, e as incapacidades físicas que as pessoas já apresentam quando são diagnosticadas, então a transmissão está a acontecer”.

“Esta é uma doença que não se pode erradicar, não há vacina. É uma doença que está sempre associada à pobreza, à desigualdade social, à vulnerabilidade”, frisou.

A perita reuniu-se com representantes governamentais, organizações da sociedade civil, especialistas em saúde, direito e ciências sociais, além de pessoas afectadas, os seus familiares e as suas organizações representativas.

Alice Cruz tornou-se em 2017 a primeira Relatora Especial para a Eliminação da Discriminação contra as Pessoas Afectadas pela Lepra e seus Familiares.

Em Janeiro de 2019 (já João Lourenço era dono do país), o secretário de Estado para Saúde Pública, José Viera Dias da Cunha, afirmou que Angola contava com 618 novos casos de lepra, correspondente a uma taxa de detecção de 2.17 por cento por 100 mil habitantes.

Até o início do século passado, os leprosos eram isolados em colónias e condenados a viver distante do resto da sociedade. Há referências à lepra na Bíblia e em papiros egípcios de 1.500 a.C.. Restos ósseos com quase 5 mil anos de idade com evidências dessa patologia foram encontrados na Índia. E como era no tempo colonial?

Segundo o responsável, que falava num acto comemorativo do Dia Mundial da Lepra, que se assinala a 27 de Janeiro, estes números representavam uma taxa de deformidade de 16.20 por cento em novos casos.

Luanda, Huambo, Malanje, Cuando Cubango, Benguela, Bengo, Bié e Moxico estavam entre as províncias que registam maior incidência desta doença no país, onde os últimos dados apontavam para o registo de pouco mais de mil casos.

José Viera Dias da Cunha explicou que o governo (do MPLA há 46 anos), tendo em conta as recomendações da Organização Mundial de Saúde, que tem como principal objectivo reduzir a carga da doença, estava comprometido em tudo fazer para melhorar e ampliar o acesso à informação, diagnóstico precoce, tratamento gratuito e disponível desta enfermidade, referindo que a distribuição de medicamentos para lepra nas unidades sanitárias em todo país é gratuita.

“O grande trabalho de combate à lepra deve ser feito por todos nós. A lepra é uma doença crónica, infecto-contagiosa, que atinge a pele em diferentes partes do corpo e os nervos, cuja magnitude e alto poder incapacitante mantém esta enfermidade como uma preocupação de saúde pública”, referiu.

José Viera Dias da Cunha recordou que, em 2005, Angola declarou a erradicação da lepra como problema de saúde pública e que a taxa de eliminação preconizada era de 1 caso em 10.000 habitantes, mas que a tarefa ficou difícil de cumprir, uma vez que o país ficou sem apoios para o controlo da doença.

Referiu ainda que nove anos depois da declaração desta eliminação, a OMS incluiu Angola num conjunto de 22 países mais endémicos do mundo, com alta carga de lepra em conformidade com os indicadores da doença.

José Viera Dias da Cunha alertou a população para identificar os primeiros sinais da doença e da necessidade de se procurar a unidade sanitária mais próxima da sua residência, pois, esta atitude reduz o risco de deformidade e incapacidade, o que garante que as pessoas afectadas possam levar vidas normais com dignidade. Até 2018, cerca de 20 mil pessoas haviam sido curadas da lepra em Angola.

A lepra transmite-se por gotículas de saliva. O bacilo Mycobacterium é eliminado pelo aparelho respiratório da pessoa doente na forma de aerossol durante o acto de falar, espirrar ou tossir. A contaminação faz-se por via respiratória, pelas secreções nasais ou pela saliva.

O Dia Mundial da Lepra foi instituído em 1954 pela ONU, a pedido de Raoul Follereau, o apóstolo dos leprosos do século XX, que um dia afirmou que “não há sonhos grandes demais”.

Esta efeméride tem o objectivo de sensibilizar as pessoas para a discriminação exercida sobre os doentes com lepra, assim como promover a ajuda dos leprosos e a sua reintegração social.

Foi escolhido o último domingo de Janeiro para a celebração em honra de Gandhi, falecido neste dia, que afirmou que “eliminar a lepra é o único trabalho que não consegui completar na minha vida”. O objectivo mundial é continuar o seu trabalho.

A lepra no tempo colonial

Em 1966, com os avanços no desenvolvimento dos Serviços de Saúde, segundo Rita Alpiarça Barrocas na sua dissertação apresentada, em 2016, à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em História Militar (conducente ao grau de Mestre), era possível contar em Angola um total de 338 hospitais e instituição de cuidados de pacientes, acumulando um total de 5.700 camas (nos hospitais estatais).

Estes números equivaliam a um total de 1.1 cama por cada mil habitantes. Existiam ainda 79 centros médicos especializados (maternidades, enfermarias de tuberculosos e equipas móveis de tripanossomíase). A capacidade do atendimento ambulatório chegava a 865 localizações.

Em termos de pessoal médico, em 1962 foi solicitado um aumento dos quadros para esse ano, de modo a preencher vagas que ficaram em aberto em 1961, e promover novas formações sanitárias, propostas também em 62. O pessoal técnico e auxiliar seleccionado tinha formação nas escolas técnicas em Luanda, Benguela, Carmona, Malanje, Nova Lisboa, Sá da Bandeira e Silva Porto.

No mesmo ano, foram criados, na dependência da delegação da saúde de Camabatela, Cuanza Norte, dois postos sanitários – Tango e Maúa. Para estes novos postos foram colocados: um enfermeiro de 2ª classe e um enfermeiro auxiliar de 1ª classe.

Para o ano de 1963 os dados apontam para um total de 1.787 auxiliares (incluindo: auxiliares parteiras, enfermeiros qualificados, enfermeiros de visita, e sanitários de saúde rural). Em 1965 o número de médicos era de 492, dos quais 352 estavam ao serviço do governo.

No início da década de 1960, em Angola havia dois hospitais centrais – Hospital de Luanda e Hospital de Nova Lisboa. Os hospitais regionais funcionavam nas sedes de distrito e em algumas delegacias da saúde, sendo que quase todas dispunham de instalações de internamento de doentes.

Estas instalações por norma tinham capacidade para receber os doentes evacuados dos postos sanitários onde não existia assistência especializada. Além destes, espalhados pelo território estavam os restantes dispositivos médicos (dispensários, maternidades, leprosarias, etc.). Para o dito território de Luanda existia um dispensário pré-natal, um laboratório farmacêutico, um laboratório de análises químicas, bromatológicas e toxicológicas.

O Serviço de Combate à Lepra foi criado em 1959 e regulamentado em 1960, realizava uma prospecção intensiva por toda a província, com seis circuitos motorizados móveis, leprosarias e postos sanitários, administrando a conveniente terapêutica sulfónica.

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